05/11/2007

Ilhas


"... Os homens devem ser felizes diante deste espectáculo sempre igual e sempre renovado. De Inverno nenhum barco atraca ás Berlengas. Só e Deus no mais belo sítio da costa portuguesa!... Atrevo-me a falar a um velho musaranho, de focinho arreliador, que está metido no farol, de costas para o mar, fingindo que me não vê, a esfregar e a polir os metais reluzentes.
- Hem?...
- Hum!...
Rosna e não diz palavra que se entenda.
- Olá!
Olha-me com desprezo e continua a polir os metais já polidos, como se eu não existisse. Mas não desanimo facilmente e teimo:
- Que beleza han?!...
Toquei-o. O homem sacode os ombros, levanta-se, atira o pano fora, encara-me de frente, com os bigodes assanhados entre as rugas e um olho azul de faiança cheio de cólera:
- Que beleza o quê? Que beleza?... Isto?!... – E ri-se. -. O vento e o mar! Sempre o vento e o mar! O vento, que no Inverno não me deixa chegar á porta, e o mar todo o dia toda a noite a bramir! O mar desesperado, o vento desesperado... Eu não sou um faroleiro – sou um náufrago. Que beleza, hem?... Nem posso dormir! Nem dormir! Toda a noite o vento uiva, toda a noite o mar ecoa, ameaçando submergir esta ilha do diabo!"
Texto retirado de “Os Pescadores” de Raul Brandão
Quando cumpria o serviço militar estive algum (pouco) tempo nos Açores, e uma das coisas que me chamou mais a atenção foi o facto das pessoas terem uma personalidade muito própria diferente dos continentais, lembro-me por exemplo das raparigas que tinham um grande desejo com elas, sair rapidamente dali em direcção ao continente se possível para casar.
Peniche é quase uma ilha, não fosse esse pequeno istmo que dantes não existia e tínhamos o porto na Atouguia e ao longe avistava-se Peniche, uma bela ilha.
Penso que Peniche ainda não deixou de ser uma ilha, e os habitantes nunca deixaram de ser ilhéus. Desde muito novo habituei-me a ver pequenas ilhas em Peniche, Peniche de cima vs Peniche de baixo, mas havia mais ilhotas, o Clube, o célebre Clube Recreativo Penichense, sempre me foi ensinado que era só para ricos, ainda hoje, dou-me muito bem com a maior parte das pessoas que lá entram, de algumas até sou amigo e no entanto nunca perdi aquela ideia de que “é só para ricos”, e tenho alguma relutância em lá entrar, não me perguntem porquê, mas há mais ilhas, a sociedade está compartimentada em ilhazinhas, os marítimos, os terrestres, os do estado e dos bancos, os professores, os do comércio, os de cá e os rurais ou do concelho, Peniche 3, bairro da caixa, etc.
Toda a vida trabalhei fora de Peniche, saía ás 7 da manhã e entrava de noite, estive por isso afastado dessa realidade, não vou dizer se bem se mal.
Hoje estou cá, vejo mais alguma coisa do que via, apercebo-me de que, pouco mudou, em termos de mentalidade, de educação e formação, os empregos são escassos, existem 2 ou 3 empregadores em Peniche, os empregos camarários com ou sem concurso são sempre para os mesmos, pouco mudou, o cartão do partido, dos 3 partidos continua a valer muito, também neste campo todos procuram desde sempre não descurar o emprego para os naturais do concelho, o peso do voto assim obriga, a pesca definha, já nem absorve mão de obra, fazemos grandes parangonas com as realizações culturais e de mera diversão esquecendo-nos de fazer um crescimento sustentado da cultura, somos pacóvios até a dizer que somos muito bons naquilo que fazemos, a onda avassaladora de informatização da informação disponível para os cidadãos é quase como um pequeno “choque tecnológico” á Penicheira, mas o lastro é igual ao que era, gostava sinceramente de estar enganado, possivelmente já não conheço a realidade desta terra.
O 25 de Abril foi há 33 anos, os tempos mudaram, e muito, este não é um problema desta câmara nem da anterior nem da antes da anterior, é um problema de todos, autarcas, professores, empresários, cidadãos anónimos. A ver se não caímos no desabafo do faroleiro de Raul Brandão ao sentir-se “abafado” na ilha da Berlenga, não contemplando a beleza que o rodeia.
Ilhéus, temos de deixar de ser ilhéus.

4 comentários:

Anónimo disse...

Dá-me a sensação que ilhéu é todo o povo português e não apenas os penicheiros/penichenses. Andamos sempre muito ciosos das nossas vidinhas e das nossas quintinhas, mas esquecemos tudo o resto, até o mundo avassalador em que vivemos. José Gil e o seu «Portugal, hoje: o medo de existir», ajuda-nos a reflectir sobre tudo isto. Recomendo!
AV

Elvira Carvalho disse...

Que grande texto Francisco. Digno de figurar no livro de um qualquer bom escritor, incluindo Raul Brandão. Mas eu acho que o problema não é só de Peniche, e que o facto de ter sido uma ilha nada tem a ver com o sentir dos penichenses. O sentimento é generalizado por todo o país que começa a descrer que esta coisa que temos implantada no país seja a democracia sonhada e ansiada por mais de 50 anos.
Penso que o amigo devia escrever mais. Escreve muito bem.
Um abraço

Anónimo disse...

Sei o que sente,tudo o que diz é verdade.
obrigado por ter coragem de o
dizer

Anónimo disse...

Nasci em Peniche e vivi lá cerca de 18 anos, há já alguns anos que não vou aí, mas nas minhas memórias Peniche é uma ilha, tal como o Francisco retrata e muito bem. Não era só o clube que era ilha, a Associação e o baile dos Bombeiros também eram ilhas.
As castas eram bem definidas e só me apercebi da sua existência quando saí daí e fui viver para Paço de Arcos, onde tudo era diferente! Parabens...é um belo texto.
Estrela