27/01/2011

O Povo

Lembro-me daquele homem e não se passaram

mais do que dois séculos desde que o vi,

não andou de cavalo nem de carroça:

descalço

anulou

as distâncias

e não levava espada nem armadura,

apenas redes ao ombro,

machado ou martelo ou pá,

e nunca espancou o seu semelhante:

a sua luta foi contra a água ou a terra,

contra o trigo para que houvesse pão,

contra a árvore gigante para que desse lenha,

contra os muros para abrir as portas,

contra a areia construindo muros

e contra o mar para o fazer parir.

Conheci-o e não se apaga da memória.

Caíram em bocados as carroças,

a guerra destruiu portas e paredes,

a cidade tornou-se num punhado de cinzas,

transformaram-se em pó todas as roupas,

mas para mim ele subsiste ainda,

sobrevive na areia,

quando antes parecia ser ele

o menos recordado.

No suceder de gerações e gerações

foi por vezes meu pai ou meu parente

ou apenas, sendo ele ou não,

aquele que não voltou à sua casa

porque a água ou a terra o engoliram

ou uma máquina ou uma árvore o deceparam

ou foi aquele enlutado carpinteiro

que ia atrás do caixão, sem lágrimas,

ou alguém que não tinha nome,

que se chamava metal ou madeira,

para quem todos os outros olharam com indiferença

vendo o formigueiro

sem olharem para a formiga

e quando os seus pés não se mexeram,

pois o pobre de tão cansado tinha morrido,

não viram nunca que o não viam:

outros pés havia já nos lugares onde estivera.

Os outros pés eram ele próprio,

as outras mãos também,

o homem renovava-se:

quando parecia já ultrapassado

era novamente ele,

ali estava outra vez cavando a terra,

cortando pano, mas sem camisa,

ali estava e não estava, como dantes,

tinha partido e estava de novo ali,

e como nunca teve cemitério,

nem campa, nem o seu nome gravado

sobre a pedra que britou suando,

ninguém sabia jamais quando chegava

nem soube nunca quando estava morrendo,

de tal maneira que só quando o pobre pôde

ressuscitou outra vez sem ser notado.

Era o homem certamente, sem herança,

sem vaca, nem bandeira,

e não se diferençava dos outros,

os outros que eram ele,

visto de cima era cinzento como o subsolo,

como o couro era pardo,

colhendo trigo era amarelo,

no fundo da mina era negro,

era cor de pedra no castelo,

no barco pesqueiro era cor de atum

e cor de cavalo na planície:

como poderia alguém saber ao certo

se era o inseparável, o elemento,

terra, carvão ou mar vestido de homem?

E onde viveu crescia

tudo quanto o homem tocava:

a pedra hostil,

quebrada

pelas suas mãos,

tornava-se ordenada

e uma a uma formaram

a recta claridade do edifício,

com as suas mãos fez o pão,

pôs os comboios em movimento,

povoaram-se de aldeias as distâncias,

outros homens nasceram,

chegaram as abelhas,

e porque o homem cria e se multiplica

a primavera foi em direcção ao mercado

por entre padarias e pombas.

O pai dos pães foi esquecido,

ele que traçou a terra, pisando

e abrindo regos, acarretando areia,

quando tudo ficou pronto já não existia,

a sua existência ofertava-a, isso era tudo.

Foi trabalhar noutros lugares, e depois

morrer rolando lentamente

Como um seixo do rio:

arrastando pelas águas levou-o a morte.

Eu, que o conheci, vi-o descer

até ser somente o que deixava:

ruas que apenas pôde conhecer,

casas que jamais habitaria.

E volto a vê-lo, e espero cada dia.

Vejo-o no seu caixão ressuscitado.

Distingo-o entre aqueles

que são seus semelhantes

e parece-me que não pode ser,

que assim não chegamos a lado nenhum,

que dessa forma não se conquista a glória.

Eu penso que este homem

Devia estar num trono, bem seguro e coroado,

Penso que os que fizeram tantas coisas

deviam ser senhores de todas as coisas.

E os que fazem o pão deviam comer!

E deviam ter luz os que trabalham nas minas!

Mas chega de tantas coisas sombrias!

Chega de pálidos desaparecidos!

Nem mais um homem que passe sem reinar.

Nem uma só mulher sem o seu diadema.

Para todas as mãos luvas de ouro.

Frutos de sol para toda a escuridão!

Eu conheci aquele homem e quando pude,

quando tive olhos para olhar

e voz para falar

procurei-o entre os campos, e disse-lhe

apertando-lhe um braço que não se desfizera ainda:

«Partirão todos, mas tu ficarás vivendo.

Tu acendeste a vida.

Tu criaste o que era teu.»

Por isso ninguém se enfade quando

pareço que estou sozinho e não estou sozinho,

quando não estou com ninguém e falo para todos:

Alguém me está escutando e não dão por isso,

Mas aqueles que eu canto e conhecem a razão

esses continuarão a nascer e povoarão o mundo.


In "Plenos Poderes"

Pablo Neruda

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A meu pai e minha mãe

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2 comentários:

Albino disse...

Absolutamente lindissimo este poema.. uma homenagem bem merecida aos nossos pais que tudo fizeram por nos para que continuemos a olhar para o futuro da mesma maneira...OBRIGADO
Abraco

Álvaro Marques disse...

Amigo "Germano" bonita homenagem com palavras sábias escritas por alguém imortal...
Um abraço