05/02/2020

O Dinossauro da Atouguia da Baleia


Gigante Jurássico ficou 56 anos fechado

Ossadas de Dinossauro descobertas há 60 anos revelam-se um achado importante na área da Paleontologia. O fóssil de 300 kg estava em 30 caixas na Amadora, escondido do mundo. Um aluno de mestrado retirou-o da rocha e limpou-o. Foram precisas entre oito a dez mil horas de trabalho só para tirar os grãos de rocha e remover o sedimento à volta de todos os ossos.
Os ossos, já têm 152 milhões de anos, mas saíram agora do baú e estão como novos. Foram descobertos há 60 anos em Atouguia da Baleia, Peniche, por um geólogo de origem russa, Georges Zbyszewwski, quando fazia estudos de cartografia geológica e levados para o LNEC (Laboratório Nacional de Engenharia Civil) em Alferragide, na Amadora. Ficaram guardados e bem acondicionados mas completamente esquecidos. Até 2015, ano em que o Paleontólogo Francisco Costa, da F.C. e T. da Universidade Nova de Lisboa os começou a estudar para a tese de mestrado. Em 2017, os ossos ganharam a forma de um dinossauro e o nome de um gigante herbívero que viveu no Jurássico Superior: o estegossauro Miragaia Longicollum. Trata-se do dinossauro mais completo de Portugal e do estegossauro mais completo da Europa. O achado teve direito a ser publicado numa revista científica e o mestrando teve 20 valores, nota máxima.
“Foram precisas entre oito mil a dez mil horas de trabalho só para tirar os grãos de rocha e remover o sedimento à volta de todos os ossos. O estudo e a preparação levaram dois anos, entre 2015 e 2017. Estou muitíssimo orgulhoso de ter sido eu a estudar este dinossauro, que é o mais completo de Portugal”.
Francisco Costa, 28 anos, tem brio pelo trabalho minucioso que realizou e pelos proveitos científicos que retirou: “ No grupo dos estegossauros deve ser o mais completo do mundo. Por isso vai dar-nos muitos dados que não conhecíamos”
Mas quem é este gigante do jurássico? O estegossauro Miragaia longicollum pertence à categoria dos dinossauros herbíveros. Comia vegetação de nível arbustiva, apesar de não conhecermos exactamente que tipo de vegetação se tratava. Vivia perto do mar, numa região baixa, com muitos rios e água doce e vegetação abundante. Tinha 2.5 metros de altura e seis metros de comprimento. Pesava entre três a quatro toneladas. Para se defender tinha espigões assustadores na cauda e placas no dorso. A cauda era usada como arma para atingir os predadores e as placas regulavam a temperatura corporal. Tinha uma cabeça pequena e alongada. Fazia 5 a 15 Km por hora. O Miragaia longicollum deve o seu nome a uma freguesia do concelho da Lourinhã. Foi baptizado em 2009 pelo paleontólogo Octávio Mateus aquando da descoberta do primeiro exemplar desta espécie na década de 1990. No entanto, só existia a metade frontal de um esqueleto. O achado da Atouguia da Baleia revelou um esqueleto muito mais completo, tornando-se uma conquista científica na área da Paleontologia.
Pescoço Longo
Com este achado confirmaram-se algumas suspeitas científicas. “Já sabíamos que ele tinha um pescoço muito comprido e que o usava para conseguir alimentar-se, chegando às copas das árvores. O pescoço tinha 17 vertebras, mais 10 do que uma Girafa, por exemplo, o que revela uma anatomia curiosa. Também suspeitávamos e confirmámos, que tinha espinhos de grande dimensão – quase toda a sua cauda estava coberta com duas fileiras de espinhos. Em vida, alguns dos espinhos de cauda deveriam ter até metro e meio de comprimento, que usava para se defender dos maiores predadores da altura, como o Torvosaurus gurneyi, que foi o maior predador carnívoro que já existiu na Europa, incluindo Portugal”, explica o Paleontólogo.
Para além de Francisco Costa, o dinossauro da Atouguia também tem um padrinho, Octávio Mateus, igualmente paleontólogo da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e colaborador do Museu da Lourinhã. Está desde a primeira hora ao lado do aluno de mestrado e foi ele que há 10 anos batizou este dinossauro como Miragaia longicollum. O nome de Octávio Mateus está associado a outros dinossauros portugueses – cujo número ronda as três dezenas – como by atlanticus (herbívoro pescoço longo), o Allosaurus europaeus ou o Lourinhanosaurus antunesi (carnívero).
Pistas sobre o passado
De facto, o novo espécime não é propriamente novo. Já tem 10 anos, “O que descobrimos agora é que esta espécie é válida. Não tínhamos ainda a certeza, apesar de ser uma hipótese forte. A espécie foi reconhecida a partir do exemplar descoberto em Miragaia. Agora podemos compreender melhor a sua anatomia e a sua posição na árvore da vida. O Miragaia longicollum veio ajudar, por exemplo, a compreender como é que a América do Norte e a Europa estavam ligadas durante o Jurássico”, refere Octávio Mateus, de 44 anos – autor e coautor de mais 200 publicações (capítulos de livros, artigos científicos e resumos de conferencias) – falando na possibilidade de existir uma ponte de terra entre os dois continentes devido à presença de um primo do Miragaia longicollum na América do Norte – mostra que a espécie passou de um lado para o outro.
Mas o estegoussaurus de Miragaia tem também parentes noutros países da Europa, designadamente em Inglaterra. Só que o dinossauro inglês, tal como o Miragaia de 2009, é muito incompleto e dele só se conhece a parte de trás.
“Este espécime de Atouguia da Baleia veio mostrar um dinossauro muito mais completo – tem a parte de trás e também parte da frente – e isso permitiu compará-lo com muitos outros. É uma espécie de Pedra de Roseta”, avança Octávio Mateus, quase chave para abrir o passado e que nos deixa novas pistas sobre a vida dos estegossauros.
A forma como os gigantes herbívoros procuravam comida é também um dado relevante e ajuda a explicar a anatomia dos dinossauros. Nesse aspecto, o Miragaia parece ser de fácil compreensão. Aquele pescoço diz tudo.
“O Miragaia longicollum viveu há cerca de 152 milhões de anos, num período a que chamamos Jurássico Superior, período de onde vêm os grandes dinossauros descobertos em Portugal, sobretudo na região Oeste, na zona da Lourinhã, incluindo os dinossauros saurópodes, os de pescoço comprido, e alguns carníveros – como o Lourinhanosauros e o Torvossauros. O que é curioso é que na altura havia muitos saurópodes, os tais de pescoço comprido, de grandíssimo porte, todos gigantes, o que fez com que o nicho ecológico para pastar, entre um e três metros, estivesse relativamente desocupado. O estegossauro evoluiu de forma a aproveitar esse nicho de alimentação e por isso o pescoço comprido que tem”, explica Octávio Mateus.
E o que aconteceu ao nosso Miragaia? Desapareceu, claro. “Conhecemos apenas dois exemplares e são da mesma idade. Ele apareceu e extinguiu-se. Esta espécie viveu um, dois ou três milhões de anos. Não sabemos a causa da extinção, nem sabemos a causa da origem. Naturalmente, e inevitavelmente, todas as espécies se extinguem. Esta foi mais uma”, adianta.
300 Quilos de fóssil
O fóssil agora redescoberto estava distribuído por 30 caixas de madeira e dividia o espaço com outro dinossauro, que também está a ser catalogado por um paleontólogo do Laboratório Nacional de Energia e Geologia. No seu conjunto as ossadas deverão pesar cerca de 300 quilos. O osso mais pesado é o fémur, com 80 quilos e a seguir a tíbia, com 60. O crânio, completo, deveria ter 15 quilos.
Mais do que os 300 quilos de fóssil, é o peso histórico que vale a pena preservar. Razão pela qual Octávio Mateus e Francisco Costa transportam o seu dinossauro como se fosse uma pluma. “Vamos pôr o fémur aqui, agora os pés, com cuidado. Atenção à cabeça. Mais uns restinhos e está na posição correcta”. O fóssil ocupa várias mesas de uma sala do LNEG, no campus de Alferragide. Os ossos estão devidamente distribuídos e os paleontólogos dão os últimos retoques para o seu achado ficar bem na fotografia. E até os mais ignorantes na ciência dos fósseis conseguem perceber que está ali um dinossauro. Não tão perceptivel a olho nu, porem, é o metro de osso que falta na zona do dorso.
Um marcador que é um martelo
Para chegar aos dias de hoje, o nosso gigante do passado precisou de muito mimo. Octávio Mateus explica: ”O trabalho começou em Setembro de 2015. Já sabíamos da existência deste dinossauro nos arquivos uns três anos antes, mas era preciso prepará-lo, trabalhar os ossos e retirá-los da rocha, o que aconteceu entre 2015 e 2017. A preparação propriamente dita foi feita no laboratório com recurso a um micro martelo pneumático, uma espécie de martelo pneumático das obras, mas do tamanho de um marcador, e que permitiu esgravatar a rocha afastando-a e retirando-a do osso. E esse trabalho foi feito pelo Francisco, que passou horas infindáveis, dias, semanas, meses a retirar todos os grãos de rocha que estavam a envolver estes ossos. E não se estragou até hoje porque tinha sedimentos à volta, mas assim que se retirou da rocha foi preciso protege-lo. Seguiu-se o estudo propriamente dito e agora a publicação”.
Francisco Costa defendeu a sua tese já há cerca de dois anos. Seguiu-se, explica Octávio Mateus, “todo o trabalho da publicação científica, que veio validar a descoberta perante os pares. Só no dia em que saiu o artigo científico de 124 páginas, na prestigiada PLOS ONE, é que a descoberta foi anunciada. A tese em si, convém dizer, é de 20 valores, o que demonstra a qualidade do trabalho do Francisco”.

Datar por aproximação
A própria datação da descoberta também não foi fácil e começou por ser um trabalho de aproximação. As caixas tinham etiquetas que serviram como primeira pista. Uma das etiquetas era uma folha de agenda de 19 de Junho de 1951. Parecia fácil, claro, mas acabou por não ter correspondência com a data real. Graças a publicações periódicas em cartas geológicas da época, os paleontólogos conseguiram chegar ao período 1957/1960. Antes de 1957 não havia qualquer referência ao achado de Atouguia da Baleia. Mas já havia após o ano de 1960. O passo seguinte foi a análise aos elementos químicos que compunham as rochas e aí foi fundamental o registo histórico do LNEG. O ano de 1959 começava a desenhar –se como o mais provável. A comparação com a anatomia de outros dinossauros já existentes eliminou as dúvidas que ainda pudessem existir. Pormenor curioso, também de alguma relevância, foi a inscrição, numa das etiquetas: ‘Athouguia da Baleia’.
Mas o trabalho de Francisco Costa, que beneficiou de uma bolsa de investigação financiada pelo LNEG para desenvolver este projecto, está longe de estar concluído. O conjunto de ossos ainda vai ser montado e colocado em pé, formando um esqueleto quase completo de um dinossauro que em vida pesou entre três a quatro toneladas e andou por aí a passear entre continentes. O espécime vai ficar exposto definitivamente no Museu Geológico, na rua da Academia das Ciências, em Lisboa, no próximo ano.
Para o futuro, fica a dúvida. Será que naquele baú ou em outros laboratórios idênticos há mais achados desta natureza?
Segundo Octávio Mateus, um paleontólogo pode fazer um excelente trabalho no campo a descobrir novos fosseis e a desenterra-los, mas também pode ir a um laboratório ou a um museu e encontrar aquilo que passou despercebido a outros.
“Há fosseis que requerem estudos e novas atenções. Até aqueles que já foram estudados. Convém voltar a analisá-los com uma perspectiva moderna, por exemplo com conhecimento da tectónica de placas, que é relativamente recente, ou evolução das espécies. Até mesmo os fósseis já conhecidos podem dar-nos informação extra”. Quem sabe se os laboratórios não serão verdadeiros templos de dinossauros.
(Artigo feito a partir de texto e imagens inseridas em Revista do Correio da Manhã)

Créditos:
Paleontólogos:
Octávio Mateus
Francisco Costa
LNEG
PLOS ONE
CM Revista

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