14/02/2020

Os Oleiros de Geraldes


Quando nos debruçamos sobre a História local ocasionalmente a facilidade impele-nos a valorizar e evidenciar aspectos singulares da vida das populações, descurando o seu quotidiano, analisamos o monumento, interpretamos o acontecimento e desconsideramos o que de mais puro poderia ser considerado a identidade histórico-cultural de um povo ou de um lugar: o seu quotidiano, a vida nos seus aspectos mais comezinhos, nos ritmos e gestos quase intemporalmente repetidos. É o domínio do dia-a-dia e do pulsar genuíno e constante dos povos.
Nesta perspectiva, uma análise interpretação do quotidiano de um local nunca poderia descurar a ocupação predominante das respectivas populações, em linguagem um pouco arcaica: os seus ofícios.
Há ofícios que se podem considerar básicos no decurso da nossa história – tanto aparecem nos documentos do século XII como os vemos ainda hoje e do seu produto nos servimos: o sapateiro, o alfaiate, o tecelão, o carpinteiro, o ferreiro, o ourives, o moleiro, o padeiro, etc.
O artesanato revive nos nossos dias momentos de prestígio e conhece a preferência das populações. O artesão é a sua produção especializada, acarinhadamente única, recolhe a admiração dos apreciadores e muitas vezes constitui um verdadeiro ex. libris da identidade local.
No caso concreto do nosso concelho, a população de Geraldes possui na formação da sua identidade, o mesmo é dizer na sua História, um ofício que distinguia essa povoação das demais e que a tornava imprescindível à sobrevivência das restantes; quer no que se refere à vida doméstica quer no que concerne ao desenvolvimento de outras actividades, desde a tecelagem às pescas. Trata-se da olaria.
Importa esclarecer que todos os ofícios reconhecidos tinham um Juiz que dirimia as causas em primeira instância e velava para que as condições de fabrico e venda dos produtos estivessem de acordo com as regras que cada concelho estabelecia. Estas regras eram compiladas num “Regimento”, o qual continha algumas condições de fabrico e preços máximos; periodicamente, a evolução das situações, modos de vida e condições da produção levava a que os regimentos fossem revistos e os preços sofressem nova taxação.
O lugar de Geraldes, há 300 anos atrás caraterizava-se por possuir um núcleo artesanal bastante activo, no então concelho de Atouguia da Baleia, em que avultavam os oficiais oleiros e respectivas oficinas. Nota-se que apenas Geraldes se podia orgulhar de ter na respectiva vintena este tipo de artesão.
A olaria da época desempenhava um importante papel ao nível das condições de produção de outras actividades. Em Geraldes produzia-se desde o simples púcaro, alguidar e frigideira de barro /loiça, passando pelas medidas de líquidos (barris, cântaros e bilhas), até pesos de tear e redes de artes de pesca. Em 1720 os juízes do ofício de oleiro, Pascoal Francisco e António Martins, ambos do lugar de “Giraldos”, compareciam perante os oficiais e senhores da governança da Câmara solicitando a alteração do Regimento e Taxa dos Oleiros por esta já ter muitos anos. Em 1802, José dos Santos e Leonardo Franco, juiz e mestre do ofício de oleiro voltam a solicitar nova reformulação da taxa dos preços e do regimento dos oleiros do concelho. Desta vez as razões são claramente expressas: “eles queriam se lhes fizesse novo regimento por ser antigo o que usavam e na época presente, todos os víveres terem chegado a tal excesso de preço que não recebem lucro algum do seu trabalho e juntamente pela grande falta de lenhas que há, as quais compram por grande preço a seus donos porque os matos do concelho não criam as que bastam para cozerem a loiça.

Vejamos um exemplo prático do resultado das novas taxas e do regimento de oleiros de Geraldes em 1802.
De um cântaro de um almude até catorze canadas e daí para cima não levavam mais que 50 reis
De uma bilha de 3 canadas até 4 levavam 15 reis
De um pote com seu púcaro e testo sendo grande levarão 25 reis
De uma panela que leve um almude levarão 50 reis
De um telhador sendo grande levarão 10 reis
De um barril de meio almude e daí para cima levarão 25 reis
De uma tijela grande de quatro asas com o seu telhador levarão 35 reis
De uma tijela pequena levarão 5 reis
De um fogareiro de quatro asas com seu telhador levarão 40 reis
De uma panela batida com seu testo levando até seis canadas 25 reis
De um púcaro largo levarão 5 reis
De um alguidar de lavar roupa levarão 30 reis
De uma frigideira pequena levarão 5 reis

E para que ninguém pudesse alegar desconhecimento do novo regimento aí estava o pregão do porteiro: “ Aos vinte e sete dias do mês de junho do presente ano nesta Vila de Atouguia da Baleia e Praça pública dela ao sair a gente da Missa do dia, pelo Porteiro do concelho Joaquim dos Reis foi apregoado o novo regimento dos Oleiros e de que devem usar de hoje em diante…
As dificuldades na obtenção de lenha e a substituição dos artefactos de barro na tecelagem, com o processo da industrialização nas pescas, com novos materiais mais duradouros e resistentes e mesmo na utensilagem do quotidiano mais doméstico, vai conduzindo à decadência das formas mais arcaicas da olaria artesanal.
Apesar da proteção municipal, as dificuldades na obtenção de combustível para o funcionamento das olarias terá levado os oficiais da olaria de Geraldes a buscar formas alternativas de rendimento.
Desta dificuldade nos dá conta a vereação datada de 1830, 9 de Março, onde foi lida uma provisão que acompanha um requerimento do Governador da Praça de Peniche, António Feliciano de Castro Aparício, no qual pretendia aforar ao concelho um terreno de mato que se denomina o Outeiro da Pedra inclusivamente os vales de João do Porco e o da Cal tudo vintenas da Estrada e Geraldes” foi tudo remetido pelo provedor da comarca de Leiria a fim A Câmara dar o seu parecer “A Câmara respondeu que sendo da utilidade pública o amanharem-se aqueles terrenos. Contudo, visto a falta de pastagens dos gados dos povos vizinhos e faltas de estrumes e lenhas para os seus usos e para os fornos das telhas e loiças não convinha o fazer-se tal aforamento porém que não obstante isso se submetia à determinação de sua Majestade”
Se nos Séculos XVIII e XIX, Geraldes era o polo concelhio do artesanato de olaria, o que fez o século XX da sua herança? O que resta hoje das olarias de Geraldes?

Vintena era uma unidade judicial e administrativa municipal em povoações com mais de 20 habitantes que se distanciassem da Sede do Concelho, tinham um Juiz de vintena nomeado pela Câmara, julgavam algumas acções, vigiavam o cumprimento das portarias, executavam as penas e coimas, apesar da predominância da olaria única no concelho, referimos ainda outros artesões presentes em Geraldes no ano de 1787, tecedeiras, sapateiros, carpinteiros, alfaiates.

 Arquivo do Tribunal de Contas, livro da décima de maneio do concelho de Atouguia da Baleia, 1787 

Créditos:
Este artigo foi escrito pela Dra. Ana Batalha no jornal Pelourinho nº 3 da Junta de Freguesia de Atouguia da Baleia, trata-se de um documento com muito interesse histórico dado que grande parte dos naturais do Concelho de Peniche e principalmente da cidade de Peniche desconhece que Geraldes nos tempos mais antigos teve uma grande industria de olaria.

1 comentário:

jacinto borges disse...

Gostei muito de ver este artigo publicado no teu blogue e por isso te agradeço muito, sempre fui um apaixonado pela Historia e ainda mais por tudo o que se relacione com a terra onde nasci Peniche e todo o seu concelho, por acaso este artigo refere-se a uma terra do concelho onde eu tenho as minhas raíses e alguns dos personagens deste texto fazem parte da minha ascendência. Há uns anos descobri no facebook este texto extraído dum jornalito editado pela junta de Atouguia da da Baleia e que só agora descobri por intermédio do Francisco Germano ser da autoria da doutora Ana Batalha, como me não foi permitido partilhá-lo para a minha página e como gostei muito do que estava escrito copiei-o escrevendo, há dias lembrei-me de o enviar para o Francisco Germano para ele ele apreciar e saber se teria aproveitamento para o blogue, em boa hora o fiz porque afinal ele até conhecia a autora do mesmo que lhe enviou o original e o incentivou à sua publicação, quero endereçar através deste escrito também os meus parabéns à doutora Ana Batalha por este texto óptimo em que narra muito da História duma terra e desconhecida da maior parte dos seus naturais, escritos destes são sempre de louvar porque nos dão a conhecer quem somos e donde viemos,adorei o texto, venham mais, ao Francisco Germano também quero agradecer o tê-lo incluído no seu blogue e dar-lhe os parabéns pela sua perseverança e pelo seu trabalho incansável na divulgação da história e costumes das nossas gentes. Obrigado meu bom amigo e que continues muitos anos a publicar estas e outras coisas lindas da nossa terra como é teu apanágio. Um abração.