17/08/2023

À Conversa com… Alberto Cruz, Pescador

 

Hoje vamos conversar com o Alberto Cruz (A.C.), um amigo de longa data que há muito nos conhecemos, morava no Fialho e eu em Peniche de Cima, gostaria que contasses o essencial da tua escolaridade até ires para o outro lado do mundo.

A.C. -  Quando era miúdo fui para a escola da Maria Mechas assim como tu, depois fiz a escolaridade obrigatória e fui para um armazém de redes trabalhar, o barco era a Vanguarda, depois fui para a Escola de Pesca no primeiro ano que esta escola abriu em Peniche, onde estive dois anos, saí e fui trabalhar novamente para um armazém e depois fui para a Escola de Pesca para Lisboa, onde estive perto de um ano, depois embarquei para o bacalhau com apenas 16 anos, foram seis longos meses de viagem, durante a qual fui muito mal tratado, ao segundo dia comecei a ser maltratado pelo capitão e assim foi a viagem inteira, de tal modo que uma vez levei um pontapé que até uma unha saltou fora, era o capitão Fernandes, a alcunha dele era o “mata cães”, e tinha um Imediato que era Nazareno, que era o Sr, José Anastácio que ainda era pior que o capitão, ele fez-me coisas a mim e vi fazer a homens pais de família que era horroroso, tínhamos meio litro de água por dia para tomar banho e para beber, então juntávamos a água de cinco, fazia 2,5 litros e dava para lavar o pescoço a todos e enfim o mais essencial, até que ao fim de quatro meses de viagem tomei o primeiro banho.

No dia 6 de Setembro de 1965, naufragámos, o navio começou a arder, chamava-se “António Coutinho” fomos para o pé de um navio que se chamava “S. Gabriel” este navio mandou o pessoal ir salvar a roupa porque o navio não estava em perigo eminente, mas nesta altura em Setembro na Gronelândia já eram muitas horas de noite durante o dia e quando fomos salvar a roupa começou a cair a noite e muito vento, quando cheguei ao navio que se estava a afundar, amarrei o bote à borda para ir buscar a roupa e quando fui para o bote estava este no fundo, depois saltei para outro que só tinha um remo, tive que ir ao “ginga” claro, ainda hoje estou para saber como é que fui buscar forças para só com um remo e debaixo de tempo, consegui chegar ao navio, eu um miúdo com 16 anos, vinha mais um colega, éramos dois garotos no bote em busca da salvação, lá chegámos ao navio, meteram-nos para dentro, quando estávamos a sair do navio ninguém pode passar pela passarela, estavam Capitão e Imediato com uma pistola cada um e fomos obrigado a saltar para o poço e só depois saltar para os botes, tal não era a qualidade daqueles homens, de tal modo que quando já estávamos no “S. Gabriel”, e estávamos a ver o navio arder e ir para o fundo, alguém disse, ele é tão bom que até apontou uma pistola à companha, o capitão do S. Gabriel ouviu e disse “isso é verdade Fernandes? é, está aqui, e mostrou a pistola”.

 Depois fomos distribuídos por outros navios, a mim calhou-me ir para o “Capitão José Vilarinho” depois passados uma semana chegámos a St John e depois mais uma semana embarcámos rumo a Lisboa de avião, cuja duração foram dois dias, devido às escalas a última das quais em Londres, sem comer e sem dormir, chegámos a Lisboa perto das cinco da manhã, não havia ninguém à nossa espera, lá fomos a pé para a Rua dos bacalhoeiros, que era onde estava o escritório, andámos a dormir nas tabernas e quando já não cabia mais ninguém dormíamos no passeio, onde as pessoas tinham de passar por cima de nós para seguirem, eram mais de 60 homens naquelas condições, à espera que o escritório abrisse que aconteceu às 11 h da manhã, e só nos deram o dinheiro para a passagem de camioneta para as nossas terras, só mais tarde é que nos deram o dinheiro do trabalho e da roupa dada como perdida. Depois fui para outro navio o “Capitão Ferreira” e lá andei mais quatro anos, e depois fui para a Marinha, todas as vezes que chegava a casa a minha mãe abraçava-me, beijava-me, mas depois vinha o Abril novamente e recomeçava aquela vida. portanto era sair do Lugre e ir para o Doris que com bom tempo eram umas 12 horas de pesca no mar, sozinho, quando tínhamos o bote cheio ponhamos um sinal e iam aliviar o bote para nós continuarmos até ao fim do dia, mas as contas do peixe apanhado nunca batiam certo, havia sempre “roubalheira”, estávamos tão cansados que suspirávamos por um dia de brisa para descansarmos um pouco, assim se levava uma viagem inteira nisto, maus tratos, fome, muita fome.

 P. Se quiséssemos caracterizar um dia no bacalhau como era?

 A.C. -  Bom levantávamos às 4h da manhã, ia-se tomar o pequeno-almoço que era um pouco de água com uma mistura qualquer, levava-se um caneco e um termo com café, depois íamos buscar a isca, que era lula e cavala, quando se estava a cortar a isca vinha o ajudante de cozinha com uma aguardente muito forte, que bebíamos para aquecer, depois era arrear Doris e ir para a pesca, com bom tempo umas 12 horas, se o tempo mudasse era até o tempo permitir, quando o navio punha a bandeira a top para fugirmos. O que se levava para comer, um bocado de peixe frito, um bocado de pão, o termo com o café e ali se estava a pescar 12 horas, era esta a vida.

Quando passou quatro anos, fiz a vontade à minha Santa Mãe e fui para a Marinha.

Ao pensar no que fiz ao ir para o bacalhau, não sei se fiz bem se fiz mal, talvez preferisse a tropa e mesmo que fosse para o Ultramar, não sei, eu vi um homem da Póvoa que se chamava David, dizia que estava doente, mas que diziam no Gil Eanes que não encontravam nada, era obrigado a ir para a proa, ora aquilo quando estava a cair neve, formava gelo e ele sem poder olhar para trás, quando o frio e o sono vinham, a cabeça do homem pendia, então o Imediato quando nós estávamos a cortar a isca que usávamos uma luva só com um dedo, pedia uma luva toda ensanguentada, chegava ao pé do homem e esfregava-lhe a luva na cara gelada com neve e gelo para ele acordar, são estas coisas que por vezes as pessoas podem não acreditar como era aquela vida.

Já agora e isto das memórias vêm aos poucos, conto mais dois episódios, na primeira viagem, tenho tanta coisa para dizer da primeira viagem, mas as memórias vêm aos poucos, no segundo navio que andei tive a sorte de não ficar lá no último dia de pesca, está aí um rapaz que viu, que quando vínhamos da Gronelândia para a Terra Nova, quando começava a fazer noite era quando arrancávamos para a Terra Nova, até Outubro, até carregar o navio, há um dia que arriámos e fomos para um mar em que eu podia estar a pescar num sítio e não estar a apanhar nada e a pouca distancia de mim estar outro que enchia de peixe, então eu e o outro içámos a vela e vamos a caminho do navio, nisto começa de cair um tempo tão mau (lá era de repente) o navio a apitar constantemente a chamar o pessoal que estava no mar, nisto a vela do Dóri que estava ao pé de mim partiu-se, eu passo-lhe a minha vela para ele, e viria a reboque dele, a minha vela também se rasgou e agora toca de remar os dois botes, nós para remar era um pouco atravessado, para ver se chegava ao navio, um vez que o navio estava a meio dos botes todos, nisto vem uma volta de mar que bate no bote e este foi pelo ar, assim este colega de Peniche que se chama Lino, viu aquilo e disse, aquele já está, mal sabia ele que era eu, o bote não virou caiu de lado, enterrou-se debaixo de água, o mar levou tudo, então foi a tirar água enquanto as forças davam, até que a baleeira chegou ao pé de nós e nos recolheu, desisti mais do bacalhau para fazer a vontade à minha mãe, mas esse dia foi de tal maneira marcante que vi a morte tão próxima que ajudou à minha saída do bacalhau. Na viagem de regresso (eu fazia leme, ganhava mais 500 escudos, nas viagens para leste e oeste ou noroeste, no pesqueiro o pessoal das máquinas é que tomavam conta do leme, para nós descansarmos) eu calhava ao “quarto” do Imediato, na viagem, já dos Açores para dentro, vínhamos a navegar e entra o Capitão na ponte, e eu disse, Sr. Capitão quando chegarmos a terra, eu quero a minha dispensa, quero sair, naquele tempo era assim, se o pescador era bom eles nunca deixavam sair, se o pescador fosse refilão ou outra coisa eles deixavam e não queriam saber, então quando o capitão perguntou e para onde é que vais, eu caí na patetice a dizer que ia para outro navio, ele disse, então não sais daqui, se eu dissesse que ia para o arrasto ele deixava-me ir, mas ao dizer aquilo como ia para outro navio da linha, não deixou, por coincidência quando entrámos na barra, veio o piloto para conduzir o navio, eu estava de quarto nesse dia também, então ainda uma última vez pedi ao capitão que me deixasse sair, mas ele disse não e acabou.

Então fartaram-se de mandar telegramas para me apresentar, mas já eu tinha ido à inspecção para a Marinha e nunca mais liguei. Quando acabou a Marinha, voltei a Peniche e fui para a traineira, entretanto no bacalhau já não havia metade dos barcos à linha, era tudo redes de emalhar e arrasto, então o Lino o tal que me viu ir no bote que virou, andava num dos navios da casa, já com redes e o Capitão Vidal estava em Peniche no Café Gaivota, e fui-lhe pedir porque se ganhava muito mais agora e a vida não era tão dura no bacalhau, e eu precisava de dinheiro para me casar, faria nem que fosse uma época e parava, lá fui pedir ao capitão Vidal se precisava de redeiros, para me arranjar lugar e ele ficou com o meu nome, então chamaram o Lino e a mim não me chamaram, ora o que é que eu faço, vou ao escritório a Lisboa e pergunto porque não fui chamado uma vez que o Lino foi chamado, o capitão Vidal ficou com o meu nome e nada, ele não abriu a boca, foi a uma estante tirou um processo que era o meu e tinha um risco vermelho em diagonal de alto a baixo, por não responder às chamadas quando fui para a Marinha, o meu nome ficou interdito para a pesca do bacalhau.

 P. Alberto em relação à pesca do bacalhau muito resumidamente está feita, depois foste para a Marinha e qual foi o passo seguinte?

 A.C. - Vim para a pesca para a traineira, depois fui para as viagens, Marrocos, Mauritânia, depois fui para Angola, sempre na pesca, depois regressei, tive um barquinho mas tive a infelicidade de me roubarem, por isso tive de voltar para a traineira, para a pesca de cerco, até à idade de 55 anos quando me reformei.

 P. Mas tiveste sempre a bordo ou já estavas nas redes.

 A.C. - Não, sempre a bordo só larguei aos 55 anos. Depois vim para o barco que ando para velho-terra, a ajudar o Atador, depois quando ele saiu eu acabei por ficar no lugar dele e cá me mantenho, até a saúde o permitir.

 P. Há uma pergunta que tenho de te fazer, porque andas nesta vida do cerco, para ti qual é a situação da pesca da sardinha (cerco) e quais são as tuas perspectivas para o futuro da vida do pescador, que é como quem diz da indústria da pesca de cerco.

 A.C. – Em relação às condições actuais em que são mantidas as cotas, acho bem porque desta forma não vai acabar tão cedo a sardinha. Em relação ao pessoal há pouco, não se vêm jovens a querer ir para o mar, estando neste momento e já há algum tempo a serem recrutados imigrantes para a pesca.

Pessoas para arranjar as redes, não se vêm a aprender, o pessoal está envelhecido e isto vai acabar. Eu por exemplo tenho 74 anos e sou dos mais novos a trabalhar nas redes. Não há incentivo para os jovens aprenderem a atar ou fazer uma rede nova. Acabando esta geração, não há ninguém que consiga fazer uma rede nova.

 P. Nestas conversas, há sempre alguma coisa que ficou por perguntar, ou algo que quisesses referir, positiva ou negativa, queres referir alguma coisa?

 A.C. -  De negativo foi a morte da minha mãe aos 62 anos, de positivo foi a formação da família, são duas filhas e cinco netos, somos todos unidos uma grande felicidade e dá para esquecer o que passei em novo.

 Pronto amigo Alberto, acho que resumidamente contaste uma parte da tua vida, da dura vida do bacalhau e não só, agradeço a tua disponibilidade para esta conversa. Um abraço





Sem comentários: