07/11/2023

À Conversa com ... Noel Petinga Leopoldo


Hoje vamos ter uma pequena conversa com o Noel Leopoldo (N. L.), meu vizinho
, e ambos da mesma “aldeia”, Peniche de Cima. Conheço-o desde sempre, porque há alguma diferença de idades. Interessa-me particularmente, para além de outras actividades que ele queira mencionar, o seu gosto pela escrita, esta é uma conversa/entrevista sem filtro, onde o entrevistado tem liberdade de expressão, que é um principio básico deste Blogue .

 O meu nome é Noel Petinga Leopoldo. Sou um apaixonado pela beleza de coisas variadíssimas; beleza essa que é essencial para o meu bem-estar. Gosto de ouvir música, de ler e escrever, de fazer jardinagem. Também gosto de cinema, e tenho interesse pelas artes plásticas. Gosto de conduzir e viajar. Tenho um sentido demasiado apurado para identificar e condenar a injustiça e a hipocrisia. Estas são as coisas que me tiram a pouca-seriedade e a boa disposição que me acompanham no dia-a-dia.  

P. - Gostaria que desenvolvesses a tua actividade como professor e outras temáticas que queiras introduzir na conversa.

N. L. – Comecei a dar aulas (estágio) no ano lectivo de 95-96, depois de quatro anos de licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas, Português-Inglês, e um ano de aprendizagem de pedagogia, tudo pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Nunca pensei ser professor. Comecei por ser 'empurrado', porque queria começar a ganhar dinheiro (o ordenado não era nada mau, na altura, para um miúdo sem encargos familiares), e porque um provinciano sem nome não pode chegar a certas esferas de actividade sem as nossas 'cunhas' à portuguesa. Mas, confesso, achei piada desde o primeiro momento. Ainda hoje acho que é uma das melhores profissões do mundo se os alunos quiserem aprender. Quando temos miúdos interessados e educados, somos felizes profissionalmente. Por outro lado, queria continuar a usar a língua inglesa, pela qual desenvolvi uma paixão imediata, ou mesmo desde uma 'lição' do meu tio, antes de eu ter iniciado sequer a aprendizagem da língua, no 5.º ano. Sempre senti que a língua inglesa me abriria portas, culturalmente falando. A vida confirmou-mo. Sempre apreciei a cultura anglo-americana relativamente a outras.

P. – Quando é que te começou a suscitar o interesse pela escrita? Quais são os temas que gostas de tratar? A tua inspiração está ligada à terra, ou não? De que autores gostas particularmente?

N. L. – Sempre gostei de escrever, mas só em contexto escolar. As minhas aulas preferidas eram aquelas em que fazíamos composições. Em casa não escrevia. Lia muito, mas quase só BD e enciclopédias. Havia poucos romances lá em casa; os que havia não me interessavam. Não tinha maturidade para aquilo. Foi na adolescência que comecei a tentar escrever, por causa de cantautores de que muito gostava (e ainda gosto) como o Bob Dylan, o Bruce Springsteen, mais tarde o Shane McGowen dos Pogues e o Van Morrison. Mas eram coisas sem qualidade, sem vida, sem maturidade. Durante aqueles seis anos em Lisboa fui frequentador bastante assíduo da Cinemateca, e foi por causa do cinema e das notas dos filmes assinadas pelo João Bénard da Costa, o então Director daquela catedral de cinema, que comecei a fazer apontamentos com impressões vagas e poéticas sobre filmes vistos. Surgiam-me às vezes imagens, frases, coisas muito distantes, mas eu recusava-me a registá-las como poesia. Penso que tinha medo. Achava que era como ter um diário; que estaria a revelar-me; que era uma coisa meio-feminina. Parvoíce (risos)! Mas faltava-me vida ainda. Mesmo quando, aos 25, me apaixonei pela poesia, continuei a não querer fixar nada em texto. Foi preciso sofrer de uma aguda 'crise dos 40' (risos), com as bagunçadas que estas crises dão, para me surgir o primeiro poema. Ainda assim, precisei de três anos para escrever um segundo e continuar a escrever com regularidade. Deixei-os na memória do computador e, muito tempo depois, ao verificar que não me envergonhava de os ter escrito, lancei o livro de estreia, em edição de autor.  Os autores que mais me fascinaram nesses primeiros anos (e que continuam a dar-me muito gozo) foram o Alexandre O'Neill, o Ruy Belo, o Eugénio de Andrade, a Sophia, o Jorge de Sena, o Manuel da Fonseca. Daí para cá tenho conhecido muitos outros, pelo que a lista seria demasiado longa.

P. – Gostava que falasses dos livros já publicados, que os enumerasses, das experiências que tiveste com os mesmos, e de saber se é possível/fácil ser escritor neste país, particularmente numa terra como Peniche.

N. L. – Já publiquei três livros de poesia e um de prosa (micro-contos). De poesia tenho "Na Corda Bamba" (o primeiro); seguidamente, "De Volta ao Silêncio Azul", e o último: "Instantes". Todos em edição de autor. Penso que escrevo sempre sobre os mesmos temas: o amor; a sensualidade do corpo da mulher; a fuga à miséria da vida vulgar, quotidiana; a fugacidade da vida; uma visão crítica e ácida da sociedade e do destino do Homem; as memórias de familiares e amigos desaparecidos. Muitas vezes procuro a temática amorosa e o humor no que escrevo. Às vezes junto os dois (risos).

Peniche é, por vezes, uma fonte de inspiração. Sempre tive muito gosto em 'viajar' por Peniche. Ainda o faço. Aquela faixa que vai da zona do restaurante "O Texugo" até à praia da Gamboa é o meu território espiritual, se não me levares a mal o toque aparentemente pretensioso. Sinto-me em casa na Papoa. Penso que Peniche merecia ter outras pessoas como habitantes: gente que venerasse esta natureza maravilhosa. Acontece isso genuinamente em Espanha, no norte, pelo menos; nas Irlandas... Aqui, o que é que temos? Gente que permite a urbanização do Quebrado! Um atentado, porque tapou a vista de mar de quem desce a marginal até aos Portões. O que é que temos? Uma terra que foi feliz com uma sala de cinema como o Cinemar, que morreu às mãos da especulação imobiliária. As pessoas não têm a noção disto, mas Peniche também morreu naquele dia das chamas criminosas. Andas por Peniche, e o que vês? Drogados a cair de podres, alucinados, subsidiados...miúdos sem um norte, sem ambição; e, por outro lado, novos-ricos e funcionários públicos com as cabeças enterradas na areia. Os alunos de excelência nunca mais voltam a Peniche. Pelo menos os que poderiam contribuir para o progresso de Peniche. Isto está feito para reter os medíocres e rejeitar os excelentes. É uma coisa perversa. É um mal para o qual não vejo solução. Não será a onda de Super tubos. Junta a isto autarcas que só vêem carnavais e canídeos à frente. Não há, nem haverá, uma elite cultural que ponha a terra para cima. E os 'maus' são 'más-línguas' como eu e outros. Não os autarcas que só pensam em comer melhor e não têm qualquer rumo para coisa alguma senão o restaurante do costume. Esses são a fina-flor da virtude. Resumindo: Peniche inspira-me, mas só nos aspectos naturais. Como dizia um amigo a pessoas que queriam conhecer Peniche: 'Entram pelos Portões; seguem em frente com o mar à direita, saem, e ficarão a ver aquilo que realmente interessa.'  O amor a Peniche fez-me ler, quase na íntegra, quando tinha uns 9 ou 10 anos, o nosso "Peniche na História e na Lenda".  O Poder esquece as pessoas. A propósito, o próprio Monsenhor Bastos, que teve um profundo amor pela terra, e que contribuiu inequivocamente para o seu progresso, só não é esquecido porque distribuiu empregos a uma larga fatia da população, que, muito justamente, lhe está agradecida e por isso o recorda (risos).

Deixando a política, e voltando aos livros, se eu escrevesse para obter reconhecimento, louros e recompensas, seria um frustrado. Em Lisboa há um núcleo restrito de autores, como no Porto. Há escribas da nossa praça que andam na carga de ombro e nas lutas de galos, entre eles, para serem os autores escolhidos. Escolhidos para o esquecimento (risos). Quem se lembrará deles? Tolos! Uns, terão valor, outros, nem por isso. Se não andas nessas lutas, se és um caso isolado e provinciano, esquece; nunca irão reconhecer-te. Não fazes por entrar nesse círculo à força e, por isso, ficas sempre do lado de fora. Vou ficar de fora, mas será sem nódoas negras (risos).

Um tipo que escreve poesia, e que tem coluna no Público, respondeu-me há uns anos a um e-mail, dizendo que a minha poesia era tão boa ou melhor do que muitas coisas dos novíssimos poetas que são publicados em editoras pequenas, mas já com algum prestígio. Isto em relação ao meu primeiro livro, que era, vejo-o claramente, bastante 'verde'. Tenho a consciência tranquila, porque mostrei a minha poesia a pessoas que poderiam abrir-me portas. Elas não foram abertas, acredito, não pela falta de qualidade do que escrevo, mas porque sou de um país com apenas quinhentos leitores assíduos de poesia. Os lugares para 'poeta registado com selo de garantia' já estão ocupados (risos). Escrevo para mim, para as amigas a quem dedico poemas (risos) e para as dez ou vinte pessoas que me lêem. Em Peniche, ninguém me conhece como poeta. Primeiro, porque só há meia dúzia de pessoas que lêem poesia. Segundo, porque, por pura estupidez, as pessoas pensam: 'Não vou ler a poesia de um tipo que conheço de ginjeira, e que, ainda por cima, não tem nome.' Já viste o que seria se apenas os Beatles, os Einstein e os Messi pudessem fazer música, ciência ou jogar futebol? Tenho imenso gosto em ser surpreendido pela poesia de novatos como eu, ou ainda mais do que eu. Não preciso, nem na música, nem na literatura, nem no cinema, que alguém me diga "Isto é bom" para que eu reconheça o seu valor. Como se alguém apenas tivesse interesse em sair com uma mulher se esta fosse elogiada por um crítico prestigiado de moda (risos)! A nova Marilyn pode ser a nossa vizinha do lado, que só as pessoas do bairro conhecem (risos). Ainda relativamente à dificuldade de se ser autor de Peniche, e tendo em conta aspectos mais institucionais, gostava de acrescentar que há, da parte dos executivos camarários dos últimos anos, um total desprezo por tudo o que cheira a cultura erudita: cinema, música, literatura. Curioso, porque estamos a falar de presidentes, ex-PCP ou independentes próximos do PCP, quando todos reconhecemos a importância das câmaras PC na promoção da cultura em muitos municípios deste país. Em Peniche temos presidentes que afirmam arrogantemente que a erudição é elitista (risos). Nem o Salazar se lembrou dessa (risos)! Carnaval e circo para o povo! Esta gente nem sabe que as peças do Shakespeare e a ópera italiana eram frequentadas por maltrapilhos de dentes podres e bafo de gin e vinho rascas (risos)! Esta gente desconfia e teme aquilo que não entende e que, por isso, não pode controlar.

P. – Para quando o próximo livro? Podes abrir um pouco a cortina?

N. L. – Faz dez anos que comecei a escrever poesia com bastante regularidade. O primeiro poema aconteceu-me aos 40 anos. O primeiro que não me envergonha (risos). Para o ano vou lançar, na minha editora (risos), a Flamingo Janota, um livro que compilará estes 10 anos. Nele estarão os três livros de poesia e os poemas inéditos, que resolvi incluir nesse livro, não num volume em separado. Depois, não sei se voltarei a publicar poesia. Continuarei a escrever, porque sinto necessidade de o fazer, mas poderei não voltar a publicar.

               P.Nestas conversas há sempre algo que nos esquecemos de perguntar. Haverá alguma coisa que queiras acrescentar, mesmo que não verse este tema particularmente, mas que te diga algo importante para ti?

               N. L. – Não, Francisco, já disse tudo o que tinha a dizer (risos). Obrigado por me abrires a porta do teu blogue. Continua com este teu trabalho tão meritório... Mas, por acaso, houve uma coisa de que me recordei durante a entrevista. Tu fazes-me recordar o ambiente fantástico do Café Moderno dos anos 70. Um café cheio de gente com fervores ideológicos e com discussões muito válidas. Pessoas da direita à esquerda. Comparado com os actuais cafés de bairro, aquele era um ambiente intelectual, pode dizer-se. Lembro-me de que era muito frequentado por jovens licenciados de medicina, por Coimbra, que estavam ávidos de saber como era a vida dos pescadores (risos). Complexos de classe (risos). Os cafés de bairro evidenciam bem a perda de nível intelectual da população de Peniche. Isso faz de ti um fóssil, no bom sentido da palavra, porque tens sabido manter-te igual: um cidadão interessado por aquilo que o rodeia. Obrigado!




2 comentários:

Maria Júlia Sobrinho disse...

Boa entrevista. Pena a pobreza de espírito em Peniche, ser tão verdadeira.

Noel Petinga Leopoldo disse...

Verdade, Maria Júlia Sobrinho. E verifico-a (a(s) pobreza(s))com lágrimas nos olhos, não com qualquer prazer mórbido. Obrigado pelo seu comentário!