08/03/2024

À Conversa com... Maria Gertrudes - uma mulher do povo

Preâmbulo/Declaração de interesses – Esta conversa foi gravada digitalmente em 2018 com a minha mãe, na altura com 90 anos de idade e na posse das suas perfeitas faculdades mentais, nomeadamente a sua memória fascinante. Hoje, a minha mãe ainda está viva, felizmente, agora com 95 anos, e resolvi passar a escrito parte dessa conversa, que incide fundamentalmente sobre as agruras de vida desde a sua infância.

“Chamo-me Maria Gertrudes Vieira (MGV), nasci em Peniche de Cima e vivi no Forte da Luz até que a minha sogra me chamou para viver com ela e o meu marido. Nunca aprendi a ler nem a escrever, que foi sempre um desgosto para mim, mas nunca foi impeditivo de saber fazer contas. Tenho uma história de vida muito difícil, mas sempre duma mulher lutadora.”

Mãe, conte-me um pouco da sua história de vida desde o princípio, aquilo de que se lembra.

MGV – Fui para o Forte da Luz morar tinha 8 anos de idade, lá fui criada com os meus irmãos. Fui mais criada no Quebrado do que em casa, com muita amargura, muita fome que passava, eu e os meus irmãos. Depois, fui crescendo e quando tinha 9 anos chamaram-me para ir servir. A casa para onde fui servir era rica, mas passava muita fome. O que é que eu faço? Volto para casa e digo à minha mãe que já não quero ir servir para aquela casa. Depois, apareceu outra que negociava peixe-seco,  morava nos Quatro Cantos, tínhamos que ir com aquelas caixas muito grandes para o Alto da Vela secar o peixe, púnhamos ao sol, depois à tardinha tínhamos de ir recolher e acartar. Levei uma vida muito amargurada, ainda era uma criança. Depois, com saudades dos meus irmãos, voltei para casa.

Não tinha tempo para brincar?

MGV – Não, nunca tive tempo para brincar, as minhas brincadeiras eram só no Quebrado, mas a minha mãe começava logo a gritar por mim, para ir fazer isto e aquilo e vinha logo corrida.

Mas, entretanto, começou a trabalhar na fábrica do peixe…

MGV – Comecei a trabalhar na fábrica do peixe com 13 anos, mas durou pouco tempo. Tinha uns 13/14 anos, cheguei a casa da minha mãe e disse que queria ir para a fábrica. Fui para a fábrica do Algarve Exportador, ganhava sete tostões à hora, mas aquele dinheiro não rendia nada, passava fome à mesma. Então, disse à minha mãe que queria ir vender peixe com ela, lá me comprou uma canastra mais pequena e fui com ela para a venda do peixe, Íamos naquele rancho de seis ou sete mulheres pela estrada fora, eu era a mais pequenina delas todas, chegávamos a um sítio em que nos separávamos e cada qual ia para o seu lugar de venda nos diversos casais e aldeias. Depois, juntávamos todas no mesmo sítio e lá vínhamos para casa (cheguei a andar a pedir à noite, ia às casas mais ricas e davam sempre qualquer coisa até me chegavam a dar um prato de sopa).

Quando chegava da venda, uma vez tinha o senhor Joaquim Bilhau à minha espera, para ir trabalhar à noite nos armazéns que ele tinha à entrada de Peniche de Cima, com tinas de peixe para escalar e para salgar, para tratar do peixe até às 10 horas da noite, e assim foi continuando, ele era uma pessoa muito bondosa e gostava muito de mim, nesta altura tinha uns 14 anos. De resto, lavava roupas para fora, caiava as casas durante parte do dia, lavava as roupas casas sempre em casa de pessoas com mais posses.

O tempo passou e foi crescendo, até que já ia sozinha para a venda do peixe. A que horas é que ia para a ribeira para o peixe?

MGV – Eu ia logo à uma hora da madrugada à espera dos barcos com peixe, chicharro principalmente. Depois, trazia o latão carregado, lavava o peixe na bica de Peniche de Cima, ia para o Forte da Luz que era onde morava com a minha mãe, pai e irmãos, e pelas três da madrugada ia a caminho de S. Bartolomeu dos Galegos com o latão à cabeça, descalça. Juntávamos um rancho de cinco ou seis e cada uma ia para o seu destino, íamos sempre juntas até um certo sítio, normalmente era o Alto do Veríssimo, numa zona de pinhal. Depois, separávamos, umas para o Toxofal de Cima, Toxofal de Baixo, etc. e, à vinda para cá, juntávamos e vínhamos todas juntas. Se alguma se atrasava, as outras espetavam uma cana na terra para avisar que já tinham partido. Acontecia muito comigo, porque eu vinha de mais longe e ficava muito triste quando chegava e via a cana espetada, então tinha de vir sozinha para Peniche. Cheguei a ter os pés quase em sangue, lavava os pés com vinagre porque estavam tão gastos que a pele era muito fina e quase em sangue. Sempre andei descalça, só calcei sapatos dos 20 anos em diante. Depois, como já tinha dito, dado que a fábrica não dava nada, continuei a vender peixe com o latão à cabeça, a pé, descalça pelas estradas fora, inclusive com o meu filho na barriga até que o tive com 21 anos.

Fui trabalhar a dias quando era preciso, nunca parava, nem me deixavam estar parada, todas queriam que eu fosse trabalhar para elas, ia lavar roupa para os pocinhos, depois ia lá uma rapariga com o meu filho para lhe dar mama, a minha vida foi sempre uma vida de escravidão.

Depois que o tempo passou já ia para a Usseira na camioneta, e quando tínhamos de ir para o Sobral da Lagoa, tínhamos de subir à camioneta para pormos o carrego lá em cima. Subíamos as escadas com o latão e púnhamos o peixe lá em cima, naquele tempo era assim, era a camioneta do José Henriques. Primeiro, comecei de Peniche a pé até S. Bartolomeu dos Galegos e para cá a pé também, depois mais tarde é que foi na carreira das 10h30, já o meu filho era vivo. Fui para a Usseira, depois Sobral da Lagoa, que tinha uma ladeira íngreme a subir com o latão à cabeça cheio de peixe e com uma ceira para a ajuda das despesas. Depois, quando vinha para baixo, ainda trazia roupa para lavar no rio cá em baixo debaixo da ponte, era a roupa do meu filho, porque eu estava em casa da minha sogra e ela coitadinha não podia, até que vinha para Peniche na camioneta das 6h30 da tarde. Foi sempre uma vida muito difícil.

Até que, quando o meu filho estava em idade de ir para a escola, o meu marido me retirou da venda do peixe para eu estar mais em casa a tratar dele, mas depois não podia parar, pois tinha de ganhar algum dinheiro e comecei a fazer rendas de Peniche até às 2 e 3 horas da madrugada, à luz do candeeiro, na casa da minha sogra que era onde eu estava.

Dessas pessoas todas que iam a pé vender o peixe aos casais quais estão vivas neste momento?

MGV – Desse tempo, das que iam vender o peixe a pé para os casais, só quem está viva sou eu e a tia Olívia.

 

Há uma altura em que foi trabalhar para a Unipeixe, com que idade?

MGV – Foi quando a Unipeixe abriu, tinha eu uns 40 anos. Mais tarde, adoeci do coração e reformei-me por doença, mas não me sentia bem parada e fui para o negócio da renda. Vinha uma senhora de Portalegre buscar as rendas que eu ia comprando e nunca houve problemas, até que umas deixaram de trabalhar devido à idade, e já não compensava a senhora vir de Portalegre buscar poucas rendas. Depois deixei tudo, ainda fui fazendo umas rendas para os netos, até a saúde o permitir. Depois já nem à renda podia estar, por causa das dores das costas e arrumei a almofada dos bilros para sempre.

 Tenho 90 anos tive sempre uma vida de trabalho duro e amargurado, mas valeu a pena. Tenho três netos e cinco bisnetos e nunca houve problemas com o meu filho e nora, agora cá estou à espera da “carta de chamada”.



 

2 comentários:

jacinto borges disse...

Olá Amigo Francisco Germano estive a ler a comovente história de vida da tua mãe e muitas vezes me comovi ao ler o que ela te respondia porque em muitas coisas me fez lembrar também a minha, realmente as nossas mães sofreram muito, nunca tiveram tempo para serem crianças, nesse tempo as pessoas tinham muitos filhos, não tinham dinheiro sequer para lhes comprar comida e era uma vida amargurada, em Peniche só se vivia do que o mar dava na aldeia metiam-se os filhos crianças a servir a minha foi com 6 anos, eu comovo-me ao ler estas histórias de vida porque apesar de ter muito pouco nunca passei fome felizmente, já fomos todos uns sortudos em relação aos nossos pais. Hoje certos jovens que tudo tiveram e enveredaram por caminhos errados deveriam ler isto e interiorizar bem porque tudo tiveram e deram cabo da vida e estas pessoas que nada tiveram foram grandes mulheres homens e são o nosso grande orgulho.Quando tiveres com a tua mãe dá-lhe um grande beijinho por mim tal como eu daria à minha se a tivesse hoje ao pé de mim. Um grande abraço.

Manuel Sales disse...

Olá chico boa noiteescrevo-te estas palavras porque gostei muito da reportagem da tua mãe na quel tempo a vida era bem dura e que Deus a conserve por mais algum tempo um beijinho para ela gostei mesmo de ler esta reportagem um abraço Chico .